Quando leitores viram haters?


O professor de cinema Ismail Xavier em seu ensaio Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema afirma que, em uma adaptação, o lema deve ser:
ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o que é do escritor
Essa frase contraria o que nós, leitores, queremos ver na tela do cinema: o livro-filmado ou, em uma linguagem mais popular, um filme “fiel ao livro”. Em termos que ainda referem-se ao texto de Xavier, queremos que não só a fábula (isto é, a história e sua sequência de acontecimentos) seja fiel, mas que a trama (modo como a narrativa é tecida) também seja.

Toda adaptação é como uma tradução, só que ao invés de dois idiomas, temos duas mídias diferentes. Por isso, existem algumas nuances de produção que nós, como amantes da estória contatada, nem levamos em consideração, quando um filme é feito, como: o número de personagens, tempo da ação, público-alvo, locações, custo… E aí, reclamamos, e como reclamamos! Reclamamos, por exemplo:

“Não acredito que Keira Knightley vai fazer a Anna Karenina!”


Sou uma fã incondicional de quadrinhos. Ao descobrir que quem faria o Coringa em O Cavaleiro das Trevas seria Heath Ledger, a primeira coisa que eu disse foi “O Nolan (o diretor) está maluco! Ele está querendo o quê? Brokeback Batman!”

Não me levem a mal. Não estava criticando o lindo Brokeback Moutain de Ang Lee, mas ver um dos cowboys do longa como o melhor vilão da DC Comics – o mesmo ator que tinha feito, anos antes, 10 coisas que eu odeio em você – era demais pra mim. Que bom que quebrei a cara, mas, infelizmente, nem sempre assim… Quando começaram a pipocar as primeiras imagens de Percy Jackson: O Ladrão de raios, dirigido por Chris Columbus, a primeira coisa que eu ouvi foi “a Annabeth é loira, por que vão colocar Alexandra Daddario no papel?” No final, Daddario viver Annabeth foi o menor dos problemas…

Para diretores autorais como Tim Burton, por exemplo, os protagonistas serão feitos pelos seus queridinhos, como aconteceu com Batman de 1989, onde o grande parceiro do diretor – Michael Keaton – viveu o morcegão. Possivelmente se fosse em uma produção mais recente, seria Johnny Depp ~Deus me livre!~

É claro que não só os diretores tem voz, os produtores também, e quando eles falam pensam em cifrões. E o que traz números pornográficos para as bilheterias? As super-estrelas. Se não isso, como explicar Keanu Reeves em Constantine ou Angelina Jolie em Lara Croft: Tomb Rider?

Outra coisa que também acontece muito é a alteração da faixa etária das personagens. A adaptação do livro The Jane Austen Book Club, de Karen Joy Fowler (sem tradução no Brasil) diminui em dez anos as idades de todas as personagens. Por exemplo Alegra, a mais jovem do grupo e filha de Sylvia, no filme tem 20 anos, mas no livro 30. Nesse caso, nem precisamos pensar muito: quem vai mais ao cinema, a senhora de cinquenta anos – como Sylvia e Jocelyn do livro – ou as quarentonas – Jocelyn é vivida por Maria Bello – do filme? Tudo é uma questão de identificação e público-alvo.

De todos os motivos, porém, o que mais incomoda é o comumente chamado whitewash, ou seja, transformar uma personagem que é étnica em caucasiana. Será que os gringos não conseguem sentir empatia por pessoas que não sejam seus pares? Alguns exemplos são: Christian Bale como Moisés; Russell Crowe como Noé; Justin Chatwin como Goku e; Jennifer Lawrence como Katniss.

“Sabe aquela parte do passeio no zoológico com Mary Poppins? Não tem no filme”


Dependendo do foco narrativo escolhido pelo diretor, alguns trechos da obra serão minuciosamente desenvolvidos (cenas), outros apenas serão citados e outros tantos nem aparecerão na trama. Por exemplo, em O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, somos apresentados ao chefe da família Corleone, Don Vito e, principalmente, até onde estende-se o seu poder. A escolha dos roteiristas – o próprio Coppola e o autor do livro homônimo, Mário Puzo – foi mostrar não como Don Corleone chegou ao comando de uma das grandes famílias da máfia de New York – mesmo isso sendo contado em detalhes no romance -, mas a trajetória de Michael Corleone, seu filho, que inicia a estória como herói de guerra e termina como o Poderoso Chefão do título.

“Por que cortaram o Pirraça de Harry Potter?”


Muitas vezes personagens são simplesmente cortados ou amalgamados a outros. O Tom Bombadil, por exemplo. Para alguns fãs de O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, essa é a parte do livro mais infantilizada. Muitos até confessam pular as partes em que a personagem aparece. Parece que o diretor do longa, Peter Jackson, é um desses fãs: simplesmente limou a participação da personagem.
Também não é rara a união de ações de dois personagens em uma. Em Batman Begins, de Christopher Nolan, Henri Ducard treina Bruce Wayne nas artes do ninjitsu. Mais tarde Wayne descobre que, na verdade, Ducard é o terrorista Ra’s Al Ghul. Nos quadrinhos Ra’s Al Ghul não tem nenhuma ligação com Henri Ducard.

Personagens em um filme significa número atores; mais atores em um filme significa gastar mais dinheiro.

Você deve estar pensando: então por que colocaram aquela super-elfa Tauriel em O Hobbit? Simples: um filme classificado como “para toda a família” precisa de personagens com os quais os espectadores identifiquem-se. Em O Hobbit de Tolkien não havia nenhuma personagem do sexo feminino. É mais ou menos o que fizeram com a equivocada adaptação da grapic novel A Liga Extraordinária, de Alan Moore. Entre os “super-amigos” do período vitoriano, colocam uma personagem americana – Tom Sawyer – que nem ao menos é citada nos quadrinhos, sendo ainda pior: fazem uma metáfora de que ele seria o substituto jovem para o velho inglês Alan Quarteman. Terrível…

“Como assim já chegaram em Bri?”


Um filme, com corte para cinema – esqueça a famigerada “versão do diretor” – chega a ter, no
máximo, 3 horas, isto é, 180 minutos. Nesse tempo, o diretor terá que fazer com que sua história seja contada e tenha coerência narrativa. Por isso, por exemplo, não dá tempo de mostrar como Don Corleone conseguiu se tornar o chefe da família – história que ficou para o segundo longa da trilogia – nem de esperar Frodo completar 50 anos – sim, ele espera 17 após ter recebido o Um anel de Bilbo – para cumprir sua jornada.

“Lestat não aparece no final do livro no carro de Daniel Malloy”


O Final. Creio que de todas as reclamações aqui indicadas, possivelmente, essa seja a mais incômoda. Um final ruim em um filme original já nos põe em prantos, agora imagine na adaptação de nossa estória favorita? Aqui, ao subir os créditos, quando começamos a comparar a obra original ao produto final, é que deveríamos lembrar da frase de Ismail Xavier “ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o que é do escritor”. Ao cabo, são duas obras diferentes. São duas formas de ver uma estória!

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